Depoimentos

Jorge Muchagato

O século XIX em Sintra

Arquitectura, Natureza e Urbanismo

Entre a realidade e a ficção (1791-1926)

«Diz-se que todo o estrangeiro poderá encontrar em Sintra um pedaço da sua pátria. Eu descobri aí a Dinamarca.»

Hans Christian Andersen, Uma Visita em Portugal em 1866, Lisboa, 1971, p. 95.

«Comme toutes les autres formes symboliques, l’art n’est pas la simple reproduction d’une realité donné, toute faite. C’est l’une des voies qui mènent à une vision objective des choses et da la vie humaine. Ce n’est pas une imitation mais une découverte de la realité.»

Ernst Cassire, Essai Sur l’Homme, Paris, Ed. de Minuit, 1975, p. 204.

« O mundo da arte não é apenas o das suas obras. Porque a obra de arte é somente o instrumento de revelação desse mundo.»

Vergílio Ferreira, Espaço do Invisível 1, 3ª ed., Lisboa, Bertrand, 1990, p. 31.

Quando entramos no Paço dos Ribafrias, situado em plena “Vila Velha”, transporto um átrio sustentado por duas colunas renascentistas bem proporcionadas, temos de imediato a impressão da impossibilidade de escolher entre avançar para o pátio interior, porque se nos depara a velhice de um muro coberto de heras e luz ao topo de um pequeno jardim, ou olhar para cima a tentar perceber o que sustem as colunas. No desvio do olhar, vemos então a escada em sombra que dá acesso ao piso superior. No pátio, a luz, mesmo em dias de névoa, é intensa e existe a surpresa de uma pequena loggia que avança, apoiada sobre mísulas, de fachada que ainda não víramos. E os canhões fingidos e sem função que lhe adornam a cimalha, memória distante e desfocada do que foram, na Idade Média, as gárgulas; memória no seu tempo mesmo de um reino que conquistou os mares das Índias.

Temos a intuição de que, para além do muro velho que a vegetação e os musgos cobriram, a serra continua a subir até aos limites do céu e das brumas graálicas; de deuses e de tritões míticos que o tempo já roubou da nossa imaginação.

Existe uma aérea e volátil nitidez de que o tempo, ali, nos contrastes da penumbra e da claridade; do silêncio só tocado pelo folhear dos ramos que o vento agita e do exterior de onde viéramos que o tempo ali parou.

A luz difusa mas intensa e em nenhum dia igual de Sintra? O pressentimento sugestivo da montanha? A matéria de uma arquitetura magistral?

Um quê? Para que entendamos um espaço que parece ter-se esvaído de tempo. Uma memória que não existiu para nós e contudo um espaço e um tempo que entendemos reconhecíveis. Imaginação ou circunstância…; só um lugar sem antecedentes nem continuidades.

Sintra é assim. E a modulação de intensidades da sua luz, e os desníveis da terra que sobe, e as árvores, e a arquitectura.

Nesta realidade é difícil entendermos o que constrói o quê; o que limita e o que avança. Deixemos que seja assim – porque é uma condição primeira para se estar neste lugar mágico. A história de arte e, em particular, a história da arquitectura, é uma variante de olhar que não nos apetece que tenha lugar aqui. É tudo apenas tempo. E os nossos passos e o nosso olhar. Percebe-se, pois, que a arquitectura é em Sintra um objeto maleável do domínio do equilíbrio que se possa encontrar entre a realidade e a ficção, categorias que aqui, mais do que as casas, os palácios, os desníveis abruptos do terreno ou da floresta, são a circunstância deste lugar e das suas emotividades – desde o pedaço de Inglaterra que Devisme levou para Monserrate, passando pela memória bávara dos castelos antigos que D. Fernando II trouxera consigo para Portugal, pelo sonho que o “Monteiro dos Milhões” legou para que a posteridade o decifrasse, até aos sonhos mais burgueses e pacíficos de quem na transição do século podia ter um chalet ou uma casa apalaçada na paz de Sintra. Ou os sonhos mais à mão de outros orçamentos confinados à inclinação de um telhado e às águas furtadas num lote urbano da Correnteza ou do Bairro da Estefânea.

A Serra de Sintra, que Ch. F. de Merveilleux descreveu em 1723-26 como sendo «constituída de uma maneira muito particular e a tal ponto que julgo não haver outra assim em todo o mundo»1, e o seu núcleo histórico – a “Vila Velha” que, apesar da presença dominante da arquitectura do século XIX, mantém uma considerável memória urbana de raiz medieval, representam, no âmbito conceptual das inter-relações entre património natural e património construído, uma das raras paisagens portuguesas onde a contextualidade destas circunstâncias originou uma realidade ambiental e estética tão harmónica que permitiu, ao longo de séculos, a convivência da diversidade dos discursos no equilíbrio de um supra discurso, fundamentado no valor imanente do natural, que os integra e lhes permite a sobrevivência. Em Sintra, a floresta separa e resguarda as imagens da arquitetura ao mesmo tempo que as envolve e as integra no sentido em que torna viável significados que em outros lugares se diluíram. Talvez por isso, não raro acontece que sejam os estrangeiros a qualificar Sintra da maneira mais original; talvez por isso, aí tenha Andersen encontrado a sua Dinamarca, Byron, Devisme e Beckford a sua Inglaterra, D. Fernando II a sua Alemanha e como para todos eles, em Sintra, existiu o lugar que pôde acolher o aparente impossível do seu romantismo estranho à realidade estética portuguesa.

Lugar de muitos lugares, assim a deve ter visto Le Roy Liberge: «(…) la presqu’île de Cintra de son rubeau bleu, tandis que de l’autre côté, la mer l’enveloppe semblant la séparer du reste du Portugal dont elle est le joyau»2.

A arquitectura é, pois, uma das diversidades deste supra discurso aglutinante mas, para além da especificidade de linguagens estéticas que a entronquem em valores de caráter mais abrangente ou nacional, adquire uma expressividade que a remete para uma circunstância específica na história da arquitectura em Portugal.

A arquitectura do século XIX em Sintra é menos um valor introspetivo e isolado em si mesmo e mais um conceito construtivo instrumento e imagem de sonhos aberto à realidade de uma ficção que o romantismo proporcionou e que ideais e atitudes individuais trouxeram até ao limite do razoável que o século XX poderia acolher.

Construída em grande parte pela arquitectura, mas também (e talvez sobretudo) pela bonomia melancólica de um micro clima e de uma ampla floresta (seja autóctone ou as espécies botânicas exóticas trazidas por D, Fernando II para o Parque da Pena e por Cook para o Parque de Monserrate), esta realidade da ficção é o universo de Sintra.

A originalidade do discurso estético desta arquitetura romântica - e do seu simbolismo – não sobreviveria em outro lugar.

Pensando nas interpretações de Husserl sobre a consciência fenomenológica do tempo, e daí entendendo a arquitectura como um objecto temporal que pressupõe uma determinada temporalidade3 (e, acrescentamos, uma narratividade: a arquitectura, em Sintra, é também um meio de representação e de transmissão de memórias, começando logo pelo Paço da Vila que sucessivamente reintegra, desde cedo, os signos da raiz mourisca, se pensarmos em memórias autóctones; e gótica ou indiana se mencionarmos memórias estrangeiras), compreende-se que a arquitectura represente, neste lugar, um valor integrado, sobretudo na paisagem. Porque a natureza é também aqui uma memória que tem que ver com uma complementarização da arquitectura pois as reintegra: as dez mil árvores de D. Fernando4 , as espécies norte-americanas trazidas para a condessa de Edla, os jardins ingleses de Devisme e de Cook.

A arquitectura, sobretudo após a construção do Palácio da Pena, alterou a relação do visível com os invisíveis dos significados5 na imagem e no entendimento da especificidade de Sintra. Mas já o palácio neo-gótico de Devisme, construído nos últimos anos do século XVIII, concretizara a sucessão da ficção romântica ao humanismo do Paço dos Ribafrias ou da Quinta da Penha Verde.

A arquitectura do século XIX em Sintra começa com o palácio neogótico de Monserrate, mandado construir por Gerard Devisme, detentor do monopólio do pau-brasil no tempo de Pombal. Mas não seria de todo injusto fazê-lo principiar, neste texto, pela tela de Cristino da Silva, Cinco Artistas em Sintra, de 1855. Talvez mais do que o estranho gothic-revival Palácio de Monserrate ou o Paço acastelado da Pena, como então melhor se chamava, Cinco Artistas em Sintra possa representar um momento-limite possível para o estudo da arquitectura do século XIX naquele lugar.

De facto, lá estão os pressupostos conceptuais da arquitectura desse tempo em que “o campo [se] tornara uma urgência e a rusticidade uma idade de ouro que o caminho de ferro ia condenar”: um conjunto de artistas, “citadinos modestos em corpo inteiro, cenograficamente enquadrados por saloios e pedras e uma intencional atmosfera de construção esforçada”6 , e a realidade de uma ficção na sua «iluminação estudada»7 . No quadro de Cristino – e isso o define enquanto peça de transgressão romântica – a construção da realidade é uma construção da natureza e aprender a realidade, nomeá-la pela imagem, é saber a natureza. E uma parte importante dessa realidade pitoresca se vê lá: entre as nuvens, no topo da montanha, como um cenário de ópera que servisse de fundo aos penedos e aos artistas que aí se faziam encontrar, a Pena de D. Fernando II, que, de resto, comprou o quadro. Atitude bávara aportuguesada, imagem – cenográfica, simbólica, onírica – eis o que é sobretudo a Pena.

Antes dela, porém, Monserrate.

4. Antes da Pena do quadro de Cristino, uma outra edificação marcou definitivamente os caminhos da arquitectura oitocentista de Sintra. Programa estético de raiz estrangeira, filiado no gothic-revival inglês, o palácio neo-gótico que Devisme mandou construir na sua propriedade de Monserrate, define, por um lado, a especificidade de Sintra enquanto micro-ambiente ideal para estéticas não-urbanas e, por outro, a permeabilidade dessa paisagem a ambientes que lhe são estranhos. Pensando que «cerca de 1750 o gothic revival já possuía uma longa história em Inglaterra»8, e tendo presente os castelos de Vanbrugh, Strawberry Hill ou Dowton, mas sobretudo o palácio neo-clássico de Devisme em Benfica, Monserrate, apesar do delineamento clássico da planimetria que já lhe foi apontado9 , é uma cottage inglesa em Portugal e assim o entendeu Marianne Baillie em 1821-23, perante as ruínas que lhe evocavam «imagens de romântica associação»10. Imagem isolada e gesto individual, apesar do projecto de William Elsden para a Sala dos Túmulos da Abadia de Alcobaça, que cerca de vinte anos lhe é anterior, sem o fundamento arqueológico coetâneo de outras construções inglesas, Monserrate, no seu gótico acastelado e civil – atitude pitoresca anti – urbana e em simultâneo o outro lado natural do mesmo inglesismo do palácio de Benfica11, -, seja qual for o autor do desenho12, ficará sobretudo como a descoberta inglesa da paisagem de Sintra. A Beckford, inglês também, não agradou na sua simplicidade; D. Fernando II quedou-se pela simpatia romântica das ruínas sem afinal o comprar e Cook actualizou-lhe a estética, já a Inglaterra conhecia o Royal Pavillion de Brighton.

O Palácio da Pena, construído em 1839 e 1849 (mas com obras até à morte de D. Fernando, em 1886), estabelece definitivamente uma legibilidade temporal/estética de cariz romântico para Sintra, fundamentada na indissociabilidade entre arquitectura e natureza e, obviamente, a História. Na legibilidade narrativa que ressalta do ecletismo pitoresco da arquitectura da Pena, está a História de Portugal traduzida por imagens (portuguesismo a que a imagem do programa gótico do projecto do barão de Edchwege não correspondera) que se associam e convivem organizadas pelo valor cenográfico, mas está também a memória tão presente do Paço da Vila e do Mosteiro fundado por D. Manuel (os azulejos de corda seca, os pináculos mouriscos, o «manuelino») e, mais ténue, do Castelo dos Mouros. Anti-clássico e pitoresco, o paço acastelado da Pena instituiu, no dilema dos seus estilos – cujas fontes o abade Castro logo em 1841 filiou nos «muitos edifícios acastelados e românticos, nas margens do Rheno»13 – uma arquitectura que se estrutura segundo a natureza e uma natureza pela qual se vê a arquitectura. Esta é a circunstância a partir da qual se constrói a imagem de Sintra enquanto lugar de uma ficção tornada realidade. Esta realidade da ficção, que conjuga gótico, mourisco, indiano e «manuelino», entre ameias, algas, troncos e cúpulas douradas, marca pelo seu programa romântico, o isolamento em que ficara o clássico arco triunfal que o marquês de Marialva construíra na sua propriedade de Seteais para saudar a visita do príncipe-regente D. João, em 1802 e, ainda, o sentido e o lugar de uma arquitectura-paisagem que nada tinha que ver, pela memória bávara que trazia e pelo seu romantismo, com a tradição dos velhos solares senhoriais portugueses (e Sintra conhecera alguns). Este palácio, «sobre as rochas e bosques, entre nuvens esfarrapadas (…), no seu estilo meio mourisco, meio italiano [onde] fazia frio e tudo era sombra e solidão»14, sonho de um rei que em 1859 se fazia fotografar envergando uma armadura medieval15, foi não apenas o graal de Strauss, mas também o graal do romantismo português, afirmando-se na oposição da montanha a uma realidade lisboeta muito pouco ficcionada na urbanidade rectilínea do seu classicismo. A importância da Pena é porém mais vasta e, na sua qualidade anti-clássica, se deve incluir também a recuperação da memória imagética de Portugal, narratividade estética de citações, e, no que significou, ao restaurar/reconstruir um edifício medieval, em termos de conceptualização dos restauros de património. Por isso Raul Lino, apodando-o embora de «arquitectura fantasiosa», de «enorme capricho inspirado nos elementos orientais mais à mão», não deixaria de lhe reconhecer o mérito de ter recuperado «elementos da arquitectura nacional, nomeadamente manuelinos »16.

Para além da Pena, arquitectura eclética que é uma autêntica realidade da ficção, estes elementos “manuelinos” haveriam de ficar ausentes nas principais oportunidades construtivas mais próximas: no pavilhão neo-árabe da Quinta do Relógio (1850-60) – projecto de António Tomás da Fonseca – que à pena, no seu mourisco, não deixava de se reportar e em especial às inscrições árabes que D. Fernando mandou gravar na Fonte dos Passarinhos17; e, depois, no exotismo hesitante entre o gótico e o indiano do Monserrate de Francis Cook. Tal como Monserrate, a Quinta do Relógio é uma das primeiras novas quintas às quais está subjacente uma conceptualização romântica da paisagem e, no interior desta, a funcionalidade de recriação e de estética da arquitectura. Não obstante a sugestão árabe e indiana, integradas na ideia eclética da arquitectura do Palácio da Pena, o pavilhão da Quinta do Relógio é já uma opção clara em favor de um projecto estético que individualiza uma só linguagem estilística. É nesta circunstância, um edifício de habitação único no quadro arquitectónico da época do município de Sintra, e, simultaneamente no quadro mais vasto do País. Obra de um arquitecto português, o pavilhão da Quinta do Relógio pode talvez ser considerado como um exemplar neo-árabe da arquitectura revivalista portuguesa, tendo certamente representado, e dada a divulgação de que foi objecto através dos periódicos e de estampas avulsas, uma primeira fixação do vocabulário neo-árabe, já desprovido da situação eclética da Pena. O Estabelecimento termal primitivo do Estoril terá sofrido uma influência deste tipo (antes de 1891).

Monserrate II (1860-63) é a continuidade do pedaço de Inglaterra que lá fixara Devisme e que agora Cook actualizava, seguindo o projecto que o arquitecto James Knowles Jr. Tinha actualizado pela bitola de John Nash; mas é também a circunstância única de um programa paisagístico racional de espécies botânicas exóticas, de percursos, de lagos, de quedas de água (as Beckford’s Falls) e de uma natureza de estratégicas perspetivas sobre o palácio. O Monserrate de Cook, acrescentado com as falsas ruínas de uma igreja coberta de raízes aéreas gigantescas, com a disposição estudada de espécies oriundas da Austrália, do México, do Japão, da China ou da América do Norte, com o seu Mount Parnassus,é o universo isolado de um imenso english garden.

É sob a matriz do eclectismo, ainda distante do nacionalismo desesperado do final do século que haveria de construir e enterrar o estilo manuelino, que nestes anos, quando Lisboa e o Porto começam a ceder à infiltração romântica da teoria dos restauros (as obras no Mosteiro dos Jerónimos a partir de 1859) ou do exotismo oriental ( o Salão Árabe do Palácio da Bolsa, 1862), em Sintra se concretizam programas arquitectónicos de uma feição mais urbana e erudita do que até então fora usual: na encosta acima da Quinta do Relógio, a italianizante Villa Roma, de autor desconhecido; dominando o vale da Vila Velha, o palácio veneziano que Cinatti projectou para o Conde Valenças e, à beira da estrada que desce de São Pedro, o Palácio Gandarinha, certamente, na sua proposta ambígua de grande villa campestre e de edifício citadino, de autoria inglesa. De entre todos estes projetos, a diferença marcara-se, sem dúvida, no Monserrate de Cook. Outro caminho, e mais decisivo também porque contemporâneo das obras da Pena, seria o seguido na campanha de obras que o marquês de Saldanha (em Sintra desde os anos 1820 )18 efectuara entre cerca de 1834 e 1835, na sua propriedade, a quinta do Saldanha. Trata-se, mais uma vez, e à semelhança da Pena, do regresso do passado quando o marquês coloca na fachada da sua capela privada um portal manuelino que comprara no Convento da Penha Longa, onde também D. Fernando II fora buscar citações manuelinas para o seu paço. Esta atitude marca, com efeito, uma das direções que a arquitectura de Sintra seguiria no final do século: o manuelino nacionalista e nivelador de que são protótipos o Palácio da Quinta da Regaleira e a nova Câmara Municipal. O princípio da alteração do ecletismo de uma ficção tornada realidade, para uma situação de realidade que se vai transfigurando em ficção, começa por aqui, pelo quimérico Palácio da Regaleira – a que Nunes Colares chamou, em 1917, «Palácio de Fadas »19 – para se completar no equívoco romântico e impossivelmente urbano que foi o Bairro da Estefânea, vinte anos mais tarde, passando pelo edifício da Câmara Municipal. Monumentalização romântica e nacionalista de fim de século do que fora o pitoresco da Pena pelos anos trinta e quarenta, a Regaleira, palácio e jardim labirínticos, não é, contudo, apenas um romantismo excessivo. Saudado como «uma das mais famosas obras de arte arquitectónica que nos últimos anos se têem executado em Portugal »20, no que o seu complexo programa iconográfico deixa transparecer, é já uma proposta positivista e intencionada de paisagem, ainda que informada em pressupostos de raiz romântica oriundos da Pena. Obra já do século XX, significativamente um segundo projecto alternativo de Manini ao desenho beaux-arts de Henri Lusseau e não é já o «objeto impossível»21 e ingénuo que de certo modo fora a Pena. O tempo da Regaleira é outro: é o tempo longo do Centenário de Camões (1880), do Ultimatum (1891), do Centenário da Índia (1898); o tempo em que «[se] tornou então claro que a consciência nacional ( nos que a podiam ter) que a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança, era o termos sido. E dessa ex-vida são Os Lusíadas a prova de fogo »22.

O significado da Regaleira, projeto onírico de Carvalho Monteiro, bibliógrafo e camoniano, resume em si a ideia fundamental de uma arquitectura revivalista pertencente ao tempo longo da transição do século que se assume enquanto imagem cenográfica e meio privilegiado dessa «tentativa de recriar uma alma “à séculoXVI”»23.

Foi precisamente a imagem cenográfica manuelina desta alma a escolhida para o novo edifício da Câmara Municipal de Sintra, projeto de Adães Bermudes. O neo-manuelino da Câmara, «concebido no estylo português da época comprehendida entre os reinados de D. Manuel e D. João III; a mesma architectura do Paço real da Cintra, tão pitoresco e intensamente sugestivo»24, que preteria, significativamente um projecto neo-clássico anterior25, representava para Sintra uma actualização portuguesa e, ao mesmo tempo, a infiltração no seu espaço aristocrático, de uma arquitectura que era comum a todo o país. A especificidade estrangeira de Sintra26, que o caminho de ferro atenuara já, parecia acabar, e por isso o projecto municipal, como a Regaleira e a menos bem conseguida Cadeia Comarcã, agradava tanto. E não era, de facto, se exceptuarmos a exagerada predominância da torre municipal, um projecto vulgar, denunciando uma boa documentação do arquitecto em termos arqueológicos.

A par desta arquitectura revivalista de imagética emblemática, construiu-se em Sintra uma outra arquitectura mais sóbria em que se manifestam ainda, na volumetria ou nos vãos, uma herança pombalina por vezes mascarada de trapeiras, platibandas ou arcos quebrados, a ainda propostas de nítida vinculação inglesa. É o caso de grande parte dos prédios construídos sobre o centro histórico ou nas suas imediações. Outra circunstância estética e vivencial evidenciam os chalets. Pelos anos 1900, os Estoris eram o grande lugar da moda de veraneio. Primeiro Cascais, pelos anos 1890, onde a família real passava o resto do verão, vinda do Paço da Vila e da Pena, em Sintra; depois o Monte Estoril, o Estoril, S. João do Estoril e por fim a orla marítima até Carcavelos, já entrados os anos 191027.

A arquitectura de chalets e de casas de campo dos anos 1890-1910 em Sintra, deve ser entendida no vasto contexto de uma arquitectura de veraneio que surge nas principais estâncias balneares e termais do país por esta época e, num universo mais restrito, tendo em atenção o que por esses anos se construía nos Estoris. Tais contextos servem aqui para confirmar a especificidade de uma “arquitectura de montanha” de cariz diferente da “de praia” que se fazia nos Estoris e, desde logo, porque Sintra possuía uma imagem histórica de que não disfrutavam os Estoris. E detinha ainda a herança estrangeira das casas de campo. De facto, para além do vocabulário ecléctico de divulgação internacional com que aqui também os chalets se adornavam (os telhados inclinados a quatro ou doze águas prolongando-se sobre as fachadas, as torres, os ângulos aparelhados e denticulados, os raios de projecção vertical…), os valores que enquadram e constroem esta arquitectura são outros – em termos formais, valores de raiz inglesa que emergem da contenção de certas fachadas ou, nos edifícios mais elaborados, valores advenientes da riqueza e da cultura dos proprietários; e, em termos ambientais, valores de natureza (a montanha e a floresta) que fomentam uma arquitectura mais intimista, mais fechada sobre si mesma, cercada por árvores, longe do bulício de sítios públicos como as praias. É uma arquitectura de silêncios, esta, e de privacidades, em que a ostentação se constrói para dentro, para um espaço em que se pretende viver bem. Um lugar sonhado de proprietários que escolhiam os estilos das casas em que queriam viver.

E é precisamente na tentativa de urbanização destes esquemas que o equilíbrio entre a realidade e a ficção que fazem erguer estes chalets se quebra – apesar de algumas árvores frondosas que escondem as casas nos seus parcos lotes de vila que cresceu para fora do centro histórico, a Estefânea não passou, com os seus palacetes e chalets (os poucos que teve) de uma Sintra sem montanha e sem jardins mas com a obstinação de manter as citações eclécticas do vocabulário estético de paradigmas de outros tempos, afinal não tão distantes.

O neoromânico em que se construía parte dos Estoris, sugerido pelo castelo medieval 1900 do capitalista Barros, moda pesada com os seus arcos de volta perfeita e decorações falsas de escaiola, não fez escola em Sintra, decerto mais próxima de exotismos árabes. Índice de civilização que nos chegava da Europa pelas páginas de revistas da arte de construir, vingou em Sintra a moda do chalet suíço, de telhados de grande inclinação e prolongamento sobre as fachadas, com as suas trapeiras e torres ou mirantes. À cabeça da melhor arquitectura, O Chalet Biester, projecto do arquiteto José Luís Monteiro nos últimos anos de 1890, com o seu ar ambíguo de «estylo que os inglezes chamam “Queen Anne”» ou de “castello antigo”, cuja genealogia suiça José de Figueiredo não deixou de apontar28, foi o mote de muitas glosas vulgarizadas de telhados abruptos, águas furtadas e torres. Mas outros exemplos de qualidade devem ser citados: O belíssimo Chalet Roseiral, em São Pedro, introduzindo o ferro decorado na sustentação dos telhados, o Chalet da Quinta Mont-Fleuri na actual Rua Maria Eugénia Reis Ferreira Navarro ou, talvez não projecto de arquitecto, a Villa Nogueiras, sobre a Estrada Visconde de Monserrate.

No ecletismo das soluções ( de que não esteve ausente algum Estilo D. João V), que agora se afastam em direcção da Estefânia ou do Chão de Meninos, sobressai o palacete de Fernando Formigal de Morais, autoria do arquitecto Francisco Parente da Silva, num «typo de architetura tradicionalista»29 que trazia para Sintra a gramática eclética do palacete urbano, da torre do chalet suíço e da citação da casa senhorial.

A pluralidade das propostas arquitectónicas mantém-se ao longo dos 10 e 20, oscilando entre ressaibos de chalets com colagens de carácter urbano, sobretudo na actual Rua Alfredo da Costa, na área da Correnteza e na Estefânea, as propostas ecléticas do Norte Júnior (o Casino, a série de casas de habitação que em 1925 e 26 projecta para a Companhia de Turismo Sintra ) a Casa Portuguesa pelo arquitecto Raul Lino que deixara obra nos Estoris. O actual edifício dos Correios, do arquitecto A. Marques Silva (1911), denota uma linguagem estética de tipo urbano que a Vila de Sintra não reconheceu senão minimamente. E deve-se ainda a justiça de citar, mas na nova zona de veraneio do litoral sintrense, as casas do arquitecto Tertuliano de Lacerda Marques.

Trata-se, todavia, de uma arquitectura diferente daquela que os mesmos arquitectos realizaram para os Estoris: Norte Júnior menos à vontade num formulário de Casa Portuguesa – já distante do cosmopolitismo áureo de Lisboa ou da garagem de Santos Jorge no Estoril – que ia buscar, de maneira algo barroca no excesso das superfícies azulejares confundida com um sabor a 1900, a Raul Lino e este, com a Casa dos Ciprestes (1912) ou a Casa dos Penedos (1922), realizando o seu melhor no âmbito da fixação de uma arquitectura vernacular de raiz seiscentista30 que se distancia daquilo que J. – A. França designava por «reino do pastiche»31.

Tal como havia já servido o romantismo da arquitectura revivalista, a paisagem de Sintra acolhia agora este outro «romantismo» de Raul Lino que se traduzia por casas de volumetrias desmultiplicadas devido ao terreno e que a paisagem – diferente da dos Estoris onde ele realizou, entre 1900-1910,uma arquitectura eclética – sugeria a Casa dos Ciprestes ou numa outra tipologia mais erudita a par da pesquisa estética/arqueológica que ela pressupunha ( Casa dos Penedos ).

O resto, nestes anos 20 em que ingratamente o arquitecto Norte Júnior prolongou o século XIX a um irreal Monte do Sereno (1926)32, é uma arquitectura de estereotipação da Casa Portuguesa – mais por via ainda de Norte Júnior do que Raul Lino – ou o empobrecimento de propostas ecléticas anteriores. Mas estes eram, afinal, os tempos novos de um quotidiano bucólico e aristocrático que a partida da família real transformara, o advento da República condenara e o caminho de ferro abolira. Sintra, nem sempre se deu bem com estas mudanças, mas, já o reconhecia em 1853-55 Latino Coelho, «teve Cintra a sua história gravada nos penhascos. As suas memórias não cessarão, porém, no século XIX»33.

A viagem pela arquitectura do século XIX em Sintra é, de algum modo, desconcertante: é difícil, na sua diversidade, lidar com o dilemas dos estilos, os quais, como dizia Malraux, mais pareciam «grandes cicatrizes da passagem da fatalidade sobre a terra»34 e, por outro lado, talvez todo este eclético património inserido numa realidade natural tão específica como Sintra seja a face visível de uma definição de cultura como a de Elliot: «a cultura pode mesmo ser descrita simplesmente como aquilo que torna a vida digna de ser vivida»35. Parece-nos que a arquitectura oitocentista de Sintra, apetecendo agora voltar aos Cinco Artistas em Sintra, foi sobretudo isto. Jorge Muchagato

Mestre em História da Arte

NOTAS

1Charles Fréderic de Merveilleux, “Memórias Intuitivas Sobre Portugal 1723-1726 », O Portugal de D. João V Visto por Três Estrangeiros (trad., pref. E notas de C.B.Chaves), Lisboa, Ministério da Cultura, Biblioteca Nacional, 1983, p.155.

2G. Le Roy Liberge, Trois mois en Portugal, Paris, Bernard Grasset Editeur, 1910, p.69.

3Husserl, leçons pour une phénomenologie de la conscience intime du temps, 3ª ed., Lisboa, P.U.F., 1991 (1ªad. :1964), p. 36, 82-91.

4A. D. de Castro e Sousa, Memória Historica sobre a Origem da Fundação do Real Mosteiro de N.S.da Pena, Que Pertenceu aos Monges de S. Jeronimo; Actualmente Palacio Acastellado, Situado na Serra de Cintra (…), Lisboa, Tipografia de A.J.C. da Cruz, 1841, p.30: «Sua Magestade, ElRei, mandou ali plantar 10 mil pés de arvores; assim nos communicou o Senhor Barão de Eschwege, em 5 de Novembro de 1840».

5Michel Foucault, As Palavras e as Coisas, Lisboa, Edições 70, 1988 (trad. de António Ramos Rosa), p. 82.

6Raquel Henriques da Silva, “A Arte entre o Neoclassicismo e o Romantismo”, Portugal Contemporâneo (dir. António Reis), Lisboa, Publicações Alfa, p. 360.

7José-Augusto França. A Arte em Portugal no Século XIX, 3ª ed., vol.I, Lisboa, Bertrand, 1990. P. 266.

8Robin Middleton, David Watkin, Neoclassical and 19th Architectura/2, London/Milano, Faber and Faber/Electa, 1980, p.324 e segs.

9Paulo Varela Gomes, “Traços de Pré-Romantismo na Teoria e na Prática Arquitectónicas em Portugal na Segunda Metade do Século XVIII”, Romantismo – da Mentalidade à Criação Artística, Sintra, Instituto de Sintra, 1986, p.235.

10M. Baillie, Lisbon in the Years 1821,1822 & 1823, London, J. Murray, 1824, cit. in Agostinho Araújo, “O Palácio Neo-gótico de Monserrate e a Sua Leitura ao Longo de Pré-Romantismo”, Romantismo – Sintra nos Itinerários de um, Movimento, Sintra, Instituto de Sintra, 1988, p. 181.

11J.-A. França, op. Cit., 1990, I, pp. 175-179.

12J.M.D. de Oliveira Travassos, “O Sítio de Monserrate em Cintra”,Archivo Pittoresco, Lisboa, tomo VII, 1864, p. 245, atribui o projeto do palácio ao arquiteto Inácio de Oliveira Bernardes e Inácio de Vilhena Barbosa, in Archivo Pittoresco, Lisboa, tomo IX, 1866, p. 186, fundamentado em CyrilloVilkmar Machado, confirma tal atribuição. José Alfredo da Costa Azevedo “Monserrate , Velharias de Sintra, vol. IV, Sintra, 1982, p. 78-79, alega que não poderia ter sido o velho arquitecto do tempo de D. João V, apesar de ser o autor confirmado do palácio de Devisme em Benfica, o autor de Monserrate, uma vez que falecera em 1781 e a propriedade foi alugada em 1790. Coloca, contudo, a possibilidade de o projeto ser anterior a 1781. Regina Anacleto, A Arquitectura neomedieval Portuguesa. 1780-1924, Coimbra, 1992 e Neomanuelino ou a Reinvenção da Arquitectura dos Descobrimentos, Lisboa, 1994, pp. 183-4, atribui-o ao arquiteto inglês que já fora o autor da Sala dos Túmulos da Abadia de Alcobaça, William Elsden. Acrescentamos que qualquer das atribuições não é inteiramente sustentável e, observada que foi uma estruturação clássica da planta (nota 9), não parece ser de todo inverosímil, enquanto não for documentado, que o autor do projeto possa ser, de facto, um arquiteto português.

13A.D. de Castro e Sousa, op.cit., 1841, p. 30, nota (&).

14Hans Christian Andersen, Uma Visita em Portugal em 1866,Lisboa, 1971, p. 95.

15Fotografia reproduzida in José Teixeira, D. Fernando II Rei-Artista Artista-Rei, Fundação Casa de Bragança, 1986, p. 294, ilustração nº 381a.

16Raul Lino, “Castelo da Pena”, Guia de Portugal (dir. Raul Proença), Lisboa, Biblioteca Nacional, 1924, p. 515.

17A inscrição repetida sobre as portas da fachada principal é a divisa dos reis de Granada, «E não há vencedor senão Deus». O texto árabe da Fonte dos Passarinhos, tal como a divisa anterior, foram transcritos por António Losa, “Influência Andaluza na Arquitectura Portuguesa dos Séculos XIX e XX”, Biblos,Vol. XLVI, Coimbra, 1970, pp. 543 e 547.

18Anne de Stoop, “Algumas Casas Românticas de Sintra”, Romantismo – Sintra nos Itinerários de um Movimento, Sintra, Instituto de Sintra, 1988, p. 228.

19A Architectura Portugueza, Lisboa, Agosto de 1919.

20Ibidem.

21P. Varela Gomes, op. cit., p. 230

.22Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português, 4ª ed., Lisboa, Publ. D. Quixote, 1991, p.22.

23Ibidem, p.25.

24Nunes Colares, in Architectura Portugueza, Setembro de 1909.

25Projecto reproduzido in R. Anacleto, op. cit. 1992, vol II.

26Escrevia a propósito Nunes Colares nas páginas de A Architectura Portugueza, Setembro de 1909: «E se Cintra, que devia possuir construcções particulares artísticas, e em vez disso, só tem, em geral, barbaridades constructivas, a que pomposamente dão o nome de chalets, cottages, e outros nomes estrangeirados, só agora tem edifícios officiaes que a não envergonham, como até há pouco tempo sucedia com os Antigos Paços do Concelho, Cadeia da Comarca e Matadouro pois todos estes edifícios, de acham construídos modernamente, deve-se à iniciativa das ultimas vereações municipaes».

27Sobre a arquitectura dos Estoris, v. Raquel Henriques da Silva, “Sobre a Arquitectura do Monte Estoril”, Arquivo de Cascais, Boletim Cultural do Município, nº 5, 1984, pp. 9 – 22, “A Arquitectura de Veraneio de S. João do Estoril, Parede e Carcavelos, 1890-1930”, idem, nº 7, 1988, pp. 93-174; e “Estoril, Estação Marítima, Climática, Thermal e Sportiva – As Etapas de um Projecto: 1914-1932, idem, nº 10, 1991, pp. 41-60.

28J. de Figueiredo, “Casa Biester”, A Architectura Portugueza, Abril de 1908. Ver, ainda, Lucília Verdelho da Costa, “O Chalet Biester de José Luís Monteiro”, Romantismo – Sintra nos Itinerários de um Movimento, Sintra, Instituto de Sintra, 1988, pp. 239-254.

29Nunes Colares, “Casa de Fernando Formigal de Moraes”, A Architectura Portugueza, Agosto de 1908.

30André Malraux, As Vozes do Silêncio, Vol. I, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, p. 36.

31T.S. Elliot, “Os Três Sentidos da Cultura” [1943], Ensaios Escolhidos, Lisboa, Edições Cotovia, 1992, p.122.

32Arquivo Histórico de Sintra, Edifício propriedade de Gregório Casimiro Monteiro, processo de obra nº 516, de 15 de Outubro de 1926, assinado pelo arquitecto Norte Junior.

33J. M. Latino Coelho, Arte e Natureza (1853-55), Lisboa, Empresa Literária Fulminense, s/d, pp. 44-45.

34André Malraux, As vozes do Silêncio, Vol . I, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, p. 36.

35T.S. Elliot, “Os Três Sentidos da Cultura” [1943], Ensaios Escolhidos, Lisboa, Edições Cotovia, 1992, p. 122.