Depoimentos

António Galopim de Carvalho

Aspectos Gerais da Geologia da Serra de Sintra

O interesse científico pela geologia da Serra de Sintra remonta aos finais do séc. XVIII e ao início do séc. XIX.

É porém a Paul CHOFFAT (geólogo de nacionalidade suíça, radicado no nosso País, nos então Serviços Geológicos de Portugal, com obra importante, vasta e pioneira no estudo da geologia portuguesa) que se deve a primeira abordagem (1885) ao reconhecimento geológico deste, como ele próprio referiu, “joyau de la petrographie”, em virtude da riqueza e diversidade petrográfica que caracteriza o núcleo da montanha.

Têm sido, ao longo dos secs. XIX e XX, muitos os cientistas eminentes, nacionais e estrangeiros, que lhe dedicaram o melhor da sua atenção e do seu saber: LACROIX, BENSÚDE, SOUSA BRANDÃO, AMÍLCAR DE JESUS´TORRE DE ASSUNÇÃO, ORLANDO RIBEIRO, CARLOS TEIXEIRA, MATOS ALVES; WRIGHT, SPARK, MOUGENOT, COCK, KULLBERG e LEAL, entre outos, confirmando, no interesse que lhe votaram, a opinião expressa por alguns, segundo a qual o maciço de Sintra constitui o acidente geológico e geomorfológico mais importante da península de Lisboa.

Este maciço montanhoso sobressai, isolado e alcantilados uns 300 metros acima das plataformas calcárias que o rodeiam, de São João das Lampas, a Norte, e de Cascais, a Sul. Quer pelo relevo, quer pela natureza geológica, quer ainda e em consequência destes dois aspectos, pelo clima e pela vegetação, a serra de Sintra constitui uma unidade algo exótica e bem saliente a meio da monotonia da paisagem envolvente, plana e com traços de uma relativa subaridez. Hoje, com evidentes características de erosão diferencial, o relevo correspondente emerge como um acidente orográfico de dureza – esculpido em grande parte já nas rochas ígneas que formam o seu núcleo magmático – bem destacado acima de uma vasta superfície de aplanação, no jeito de um grande e alongado “inselberg” com cerca de 10 Km de comprimento por 5 Km de largura, orientado sensivelmente E-W, e cujos cumes, alguns dos quais de relativa juventude e frescura das formas, se elevam a mais de 500 m de altitude. O maciço prolonga-se para Poente, por mais uns 6 a 7 Km, por um “promontório” submarino bem marcado na plataforma litoral.

O dorso alongado da serra exibe uma morfologia mais desgastada, aparentemente mais envelhecida, do lado ocidental, predominantemente constituído por rochas magmáticas do tipo dos sienitos, no geral ligeiramente mais vulneráveis à alteração meteórica e subsequente erosão. Sobressaem neste sector cumes como o Monge (490m), Peninha (487m) e Adro Nunes (422m). O restante troço do perfil, no sector oriental, exibe picos mais aguçados, ou penhas, que no geral correspondem a “caos de blocos” graníticos, isto é, amontoados in situ de grandes blocos arredondados, resultantes da alteração e da erosão próprias de certas rochas magmáticas, entre as quais os granitos, sujeitas ao tipo de clima ali reinante. Entre esses cumes, os mais elevados da serra, salientam-se a Cruz Alta (528m), Pena (527m) e Pedra Amarela (406m).

A rede hidrográficano interior da montanha está representada por linhas de água que a entalham, às vezes, profundamente, esculpindo vales muito imaturos, testemunhos da grande juventude do relevo. Escrevia, a propósito Orlando Ribeiro, em 1940,

«…tout se passe comme si le litoral était en voie de soulèvement. Nulle part comme près du Cap de roca les ravins ne sont aussi étroits ni profonds. Les ruisseaux de quelque importance s’encaisente vigoreusement: tout les vallées sont suspendues au bord de la falaise». (1)

Do lado virado ao oceano, o relevo desce por uma série de patamares. Por exemplo, dos cimos da serra, deste lado, desce-se por uma vertente muito declivosa até uma espécie de “glacis” formando um primeiro patamar (entre 260 e 190m), largo de 800 a 900m, onde se desenvolveram as povoações de Azóia e de Ulgueira, marcado pela presença de concentrações de seixos de praia e bolsadas de areias marinhas. Estes patamares são o que resta de antigas plataformas de abrasão marinha escalonadas e separadas entre si por abruptos mais ou menos conservados, como se as fases de surreição da montanha se tivessem seguido períodos de estabilidade durante os quais o mar teria exercido a sua acção abrasiva, formando praias, terminando bruscamente, face ao mar, em arribas abruptas que atingem desníveis da ordem dos 150m, como acontece no Cabo da Roca.

O relevo de que hoje nos resta a serra de Sintra assumiu, no passado, um aspecto bem mais imponente, como o atestam os vastos derrames de depósitos grosseiros que nele tiveram origem. Não é de excluir a hipótese (muito provável) de, por algumas vezes, ter estado insulada, formando uma ilha não longe do litoral. Tal situação poderá ter ocorrido no Miocénico (entre 15 e 6 milhões de anos atrás) de que há testemunhos expressos sob a forma de depósitos marinhos situados em seu redor. A esta fase ter-se-á seguido uma outra, de regressão, a que correspondem os episódios lacustres, com gasterópodes e vertebrados, mais recentes, mas ainda daquele período. Mais tarde, já no Quaternário antigo (há menos de um milhão de anos), o mar deve ter reinvadido a região, envolvendo-a de novo, como indicam os níveis de praias levantadas referenciados.

A Serra de Sintra, tal como hoje se nos apresenta, é o resultado de uma intrusão magmática oriunda da parte superior do manto (2). Tal corpo magmático, por razões tectónicas e estruturais próprias do quadro regional, assumiu a forma elíptica e a orientação EW que confere à montanha; ascendeu até aos níveis mais elevados da crosta, depois de atravessar mais de 30 Km de espessura de rochas graníticas de soco, acabando por de instruir, ou encaixar, em rochas mais recentes, de natureza sedimentar, de uma sequência de camadas espessas de cerca de 3500 metros, na maior parte acumuladas no fundo do mar e equivalentes a um intervalo de tempo de cerca de 63 milhões de anos (Ma), entre o chamado Jurássico superior com 155 Ma, e o Cretácico médio, com 92 Ma. Nesta última fase da intrusão, o corpo magmático, ou seja, o núcleo da serra deformou e elevou estas camadas da cobertura sedimentar mesozóica, então ainda submersa, que lhe servem assim de encaixante.

Hoje interpretado como uma estrutura anelar do tipo dos chamados “ring-dike” ou “ring-structure”, conhecidos na Escócia e na África ocidental, exibe grande variedade petrográfica, com diferentes tipos litológicos dispostos em anéis, num conjunto nitidamente circunscrito e sub-vulcânico. O primeiro empolamento, e na medida em que os terrenos se elevavam, teve como consequência, na área afectada, a menor espessura dos sedimentos contemporâneos, passando mesmo a haver ali lacuna de sedimentação marinha a partir do momento em que se deu a emersão do maciço.

Ainda em virtude do condicionalismo geotectónico regional, o maciço evolucionou numa grande dobra anticlinal assimétrica, tombada para Norte com tendência cavalgante nesse sentido, testemunhado por falhas inversas ao longo dessa directriz.

Os principais tipos petrográficos com expressão na litologia da serra representam uma diversidade notável, variando entre gabros olivínicos e os granitos alcalinos. Além destes termos estão representados granitos subalcalinos a calcoalcalinos, sienitos e sienitos quartzíferos, dioritos quartzíferos, gabros e gabros olivínicos, mafraítos e brechas eruptivas. Há ainda a registar a existência de um tipo particular de rocha quartzo-turmalínica, muito localizada. O granito é, sem dúvida, a rocha mais abundante, seguindo-se-lhe, para o interior um núcleo formado por sienitos e microssienitos. No sector ocidental, entre estas duas manchas, os gabros e os dioritos desenham um anel descontínuo.

Com o núcleo magmático da serra, com cerca de 82 Ma, isto é, do final do Cretácico, relaciona-se ainda densa rede de filões, radiais e concêntricos, os primeiros divergindo a partir do maciço, radialmente como o nome indica, e os segundos envolvendo-o em anéis concêntricos. Entre os principais tipos petrográficos contam-se: microssienitos, traquitos, microdioritos, microgranitos, riólitos, doleritos e lamprófiros.

As rochas gabro-dioríticas e sieníticas parecem ter resultado da diferenciação de um mesmo magma parental, a partir da fusão de uma porção do manto superior. Por arrefecimento lento e diferenciação gravítica “assentaram” na base da bolsada magmática cumulados de natureza básica diversa (entre os quais os Kaersutitos), evoluindo o restante líquido magmático para as fracções de natureza gabróica, diorítica e, finalmente, para um magma residual de natureza sienítica.

O processo de evolução magmática foi acompanhado de assimilação de rochas de crosta siálica (especialmente granitos antigos do soco) que funcionaram como primeiro encaixante na ascensão diapírica do corpo intrusivo em direcção à superfície, conduzindo à formação de granitos. Estes seriam a expressão final, por cristalização fraccionada, do magma residual sienítico. A restante parte dos granitos do maciço (a maior) terá sido formada por anatexia, isto é, por efusão dasd rochas do substrato hercínico atravessadas pela intrusão.

A sequência mesozóica, ou seja, a cobertura sedimentar finalmente atravessada pelo corpo intrusivo, contorna a serra na sua totalidade com um invólucro de estratos inclinados para a periferia dos sectores sul e leste, estando, os do bordo norte, bastante empinados, verticais ou mesmo invertidos, em consequência do cavalgamento já referido.

Distribuída entre o Jurássico superior, e o Cretácico médio, esta sequência está representada maioritariamente por rochas calcárias de fácies marinha com uma intercalação litoral, entre os 130 e os 98 Ma, durante a qual se estabeleceu, primeiro, um regime recifal e mais tarde, após emersão, uma situação francamente continental expressa na região pela área vestibular de um grande rio, em regime de delta, com deposição de sedimentos detríticos, tais como conglomerados, areias e argilas.

Nesta altura, os continentes euroasiático e americano ainda se encontravam unidos e o Atlântico ainda não estava completamente aberto. Porém, um braço de mar insinuava-se de Sul para norte entre o que é hoje a Península Ibérica e a Terra Nova, no Canadá, constituindo o que se designa por Bacia Lusitânica. Após o referido episódio continental e na sequência do processo tectónico global em curso, a região foi reinvadida pelo mar.

É neste início transgressivo, sob um clima mais quente e mais húmido que o actual, em que as terras baixas e planas do litoral começavam a ser ocupadas por braços de mar, formando lagunas, que ficaram impressas nas lamas destes fundos pantanosos as pegadas de dinossáurios, hoje postas a descoberto pela erosão nas camadas calcárias observáveis a Sul de Praia Grande (Colares). A laje que as contém fossilizadas não é mais do que a vasa dessas lagunas (formando uma capa plana e horizontal) petrificada ao longo de milhões de anos e posteriormente deformada (neste caso empinada à vertical), na sequência da intrusão magmática. O nível do mar continuou a subir e é no final desta última fase de mar pouco profundo, durante a qual (6 milhões de anos) se depositaram mais umas centenas de metros de calcários e margas, que tem início a ascensão do maciço e correspondente emersão do relevo de que nos resta a serra de Sintra, então bem mais imponente. Iniciada com a intrusão do maciço, a deformação das camadas atravessadas prolongou-se para além de evento magmático, até aos tempos recentes.

Em obediência às leis da Natureza, a criação e a incrementação do relevo provocaram respostas erosivas tendentes à sua destruição, num pulsar e num ritmo equivalentes, testemunhados pelas sucessivas acumulações sedimentares correlativas, numa dialéctica geodinâmica regulada pelo tipo e pela intensidade das forças internas e externas em confronto, e pela natureza das rochas envolvidas. Com efeito, os sucessivos depósitos acumulados, sobretudo a norte da serra, testemunham grande parte da sua evolução recente, pondo em destaque, por exemplo, a existência no início do Cenozóico de um período de clima de tipo tropical de tendência sub-árida, com estações bem marcadas mas com predominância dos meses de secura.

Por todas as características apontadas, fruto de numerosos e importantes estudos de que têm sido alvo, a serra de Sintra, é também para a geologia, uma jóia… ou uma pérola, que muito interessa preservar.

(1) Orlando Ribeiro, 1940, «Remarques sur la Morphologie de la Région de Sintra et Cascais». Revue Geographique des Pyrénées et du Sud-Oueste, 11 (3-4). Toulouse, p. 203-218.

(2) Camada geosférica imediatamente abaixo da crosta terrestre, aqui com cerca de 35 Km de espessura e constituída por rochas antigas do soco rígido paleozóico, com mais de 280 milhões de anos, dito Hercínico ou Varisco, pela relação que tem com outras zonas equivalentes da Europa no quadro da formação da chamada Laurássia, que reúne toda a massa continental correspondente norte-americano e à eurásia.